sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Musculação faz mal ao coração?



Complacência arterial


Uma característica importante do sistema circulatório é a capacidade dos vasos se distenderem. Quando a pressão dentro de um vaso aumenta, ele se dilata e, consequentemente, diminui a resistência à passagem do sangue. Graças a essa capacidade é possível que o fluxo sangüíneo seja relativamente contínuo nos pequenos vasos, apesar das grandes variações após cada batimento cardíaco (Guyton & Hall, 2000). Esta capacidade de distensão dos vasos é expressa como o aumento no volume para cada ponto de elevação da pressão [distensibilidade = aumento de volume/(aumento da pressão x volume original)].





Em estudos hemodinâmicos, no entanto, a análise da quantidade total de sangue que um determinado segmento vascular permite armazenar é mais importante do que simplesmente a sua distensibilidade. Este valor é denominado complacência vascular e é definido como o produto da distensibilidade pelo volume original ou simplesmente pela divisão do aumento do volume pelo aumento da pressão (Guyton & Hall, 2000). Algumas patologias, como a hipertensão arterial, causam diminuição na complacência arterial, no entanto, os mecanismos e implicações destas alterações ainda precisam ser melhores estudados (McVeigh, 1996; Lichtenstein et al., 1998).



Estudos



Recentemente, tem se discutido o efeito do treinamento resistido na complacência arterial para tentar sugerir que este tipo de atividade física seja maléfico ao sistema cardiovascular. No estudo inicial sobre o tema, pesquisadores australianos compararam 19 homens praticantes de musculação e 19 sedentários (todos jovens, com idade média de 26 anos) com relação à complacência arterial, impedância aórtica, rigidez regional da aorta e velocidade da onda de pulso (Bertovic et al., 1999). Apesar do ventrículo esquerdo ser maior em praticantes de musculação, os valores ajustados pela massa corporal não diferiam entre os grupos, reforçando a idéia que o aumento ventricular é uma adaptação funcional devida principalmente ao ganho de massa muscular, e não uma adaptação patológica como se acreditava antigamente. As propriedades mecânicas das artérias diferiam entre os grupos, com os praticantes de musculação mostrando menores valores de complacência em relação aos sedentários. No entanto, os resultados não revelaram nenhuma alteração funcional na função sistólica ou diastólica, incluindo análises da aorta, tanto que os autores sugerem que as implicações clínicas da menor complacência precisam ser melhor estudadas.



Em 2003, um estudo similar foi publicado por Motohiko Miyachi e colaboradores. O estudo envolveu 62 homens jovens (20 a 39 anos) e de meia idade (40 a 60 anos), divididos em sedentários e praticantes de musculação. Os praticantes de musculação apresentavam alterações favoráveis na composição corporal, com menores valores de percentual de gordura e relação cintura-quadril. Ao contrário dos resultados de Bertovic et al. (1999), não houve diferença na complacência arterial entre jovens praticantes de musculação e sedentários, no entanto, os homens de meia idade praticantes de musculação apresentavam menor complacência em relação aos sedentários da mesma faixa etária.



No ano seguinte, o mesmo Motohiko Miyachi apareceu como primeiro autor de um estudo experimental cujo objetivo foi avaliar se o treinamento de força reduz a complacência arterial em homens jovens (Miyachi et al., 2004). O estudo durou oito meses e envolveu 28 homens com idade entre 20 e 38 anos, divididos aleatoriamente em dois grupos: 1) controle – permaneceu sedentário durante o estudo; 2) treinamento resistido – praticou musculação três vezes por semana durante quatro meses e depois permaneceu sedentário nos quatro meses seguintes. De acordo com os resultados, os quatro meses de treinamento de força reduziram a complacência arterial, no entanto, os valores voltaram ao normal durante os quatro meses de destreino. No entanto, os demais parâmetros fisiológicos não foram alterados.



Posteriormente, Cortez-Cooper et al. (2005) realizaram um estudo com mulheres jovens (média de 29 anos) para avaliar se as alterações na rigidez arterial ocorreriam nesse grupo. Vinte e três mulheres praticaram treinamento de força durante 11 semanas enquanto outras 10 permaneciam sedentárias. Os resultados mostraram aumento na massa magra dos membros inferiores para praticantes de musculação. Apesar de ter confirmado aumento da rigidez arterial, tais alterações não foram acompanhadas de outras que poderiam indicar risco, como proteína C-reativa, viscosidade sangüínea e lipídeos sangüíneos (Cortez-Cooper et al., 2005). Além disso, os resultados revelaram que praticantes de musculação e sedentários apresentavam variações similares em alguns valores associados à complacência, o que pode sugerir variações sazonais.



No entanto, ao contrário aos estudos anteriores, Rakobowchuk et al. (2005) não encontraram efeitos do treinamento resistido na complacência arterial de homens jovens. Vinte e oito voluntários (idade média de 23 anos) participaram deste estudo de 12 semanas realizado por pesquisadores do Canadá e Holanda. O treino de força foi desenhado para promover ganhos de massa muscular e realizado cinco vezes por semana, com alternância de treinos A (músculos que “empurram”), B (músculos que “puxam”) e C (membros inferiores). Os treinos foram realizados em intensidade máxima, de acordo com um modelo de periodização linear, iniciando com 10-12 repetições e terminando com 5-6. Os métodos utilizados para avaliar a complacência arterial foram os mesmos adotados anteriormente por Miyachi et al. (2003). Os resultados não mostraram alterações na rigidez ou complacência arterial, e nem em outros parâmetros como espessura da intima-média ou dimensões da carótida. Por outro lado, foram verificadas reduções na pressão de pulso braquial e carótida.



Implicações



Portanto, a controvérsia com relação aos efeitos no treinamento resistido na complacência arterial permanece, com dois estudos experimentais indicando redução e um outro apontado para ausência de efeitos. Entretanto, mesmo que seja encontrado tal efeito, deve-se analisar se há um comprometimento funcional, o que não foi reportado em nenhum dos estudos anteriores. A complacência parece estar inversamente relacionada com a quantidade de massa muscular (Convertino et al., 1988), tanto que a perda de massa muscular causa aumento da complacência (Convertino et al, 1989; Melchior et al., 1993). A sugestão é que a complacência seja menor quando há uma maior massa muscular para fornecer suporte estrutural e limitar a expansão dos vasos. De fato, nos estudos transversais citados anteriormente, os praticantes de musculação possuíam maior massa muscular que os sedentários (Bertovic et al., 1999; Miyachi et al., 2003).



Outro ponto a ser ressaltado é que uma maior complacência é associada à maior tolerância aos testes de pressão negativa (Lightfoot et al., 1994), como os usados para detectar síncope vasovagal. Tanto que um dos motivos pelo qual os astronautas têm intolerância a ficar na posição ortostástica após retornarem de seus vôos é o aumento da complacência, possivelmente devido à perda de massa muscular (Convertino et al, 1989). Portanto, a complacência deve ser mantida dentro limites fisiológicos, nem deve ser muito baixa nem muito alta. Aliás, se fossemos radicalizar diríamos para que se evitassem os exercícios aeróbios tendo em vista os supostos prejuízos à tolerância ortostática (van Lieshout, 2003; Ogoh et al., 2003)



As alterações encontradas na complacência não parecem ter repercussões negativas em nível funcional. Por exemplo, o mesmo grupo que encontrou as reduções na complacência arterial em homens de meia-idade praticantes de treinamento resistido (Miyachi et al., 2004) realizou um estudo para verificar se pessoas de meia-idade praticantes de treinamento de força teriam comprometimento do fluxo sangüíneo para os membros inferiores. Os resultados mostraram que o treinamento de força “influencia de maneira favorável a perfusão das pernas e a hemodinânica em idosos”, tendo em vista que o fluxo sangüíneo total e condutância são maiores em praticantes de musculação (Miyachi et al., 2005). Também é importante lembrar que tais alterações positivas não são encontradas com exercícios aeróbios conforme mostram os estudos de Dziekan et al. (1998) e Dinenno et al. (2001). 



Por que será que isso não é lembrando quando falam do assunto?? Aliás será que uma possível redução na complacência (caso ela seja verificada conclusivamente) superaria todos os benefícios conhecidos do treinamento resistido?? Estranho também é se esquecer que o treinamento resistido tem um modesto efeito redutor na pressão arterial, como sugerido nas metas-análises de Kelley (1997), Kelley & Kelley (2000) e Cornelissen & Fagard (2005) e é indicado pelas principais instituições de saúde do Mundo. Portanto, antes de se precipitar em sugerir que a queda de complacência encontrada em alguns estudos consista em um prova de que o treinamento de força seja prejudicial à saúde cardiovascular, é essencial verificar alguns pontos:



1) avaliar se a queda de complacência realmente ocorre.



2) caso ela ocorra, avaliar se a queda de complacência em função do treinamento resistido é uma adaptação funcional ou patológica.



3) avaliar se tal alteração causa prejuízos reais à saúde dos praticantes que sejam superiores aos benefícios conhecidos, de modo a causar sua contra-indicação.

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